Vestido de noiva

Entender uma cultura através do estudo do teatro
                                                                                        — The Bildner Prize 2020

Por Marianna Costeletos

A maioria das pessoas descobrem os costumes, a cultura e a situação sócio-política de um país através de cursos de história, de artigos que leem em jornais e redes sociais ou da sua experiência nesse país, incluindo seus contatos com amigos e outras pessoas. De fato, muitos indivíduos resumem a história de um país a datas, fatos ou acontecimentos históricos. Concordo que alguns eventos no passado de um país são cruciais para entender algumas tradições, porém, acho que a cultura de uma região pode ser aprendida desde outras perspectivas.

Opino que a experiência artística é mais marcante para compreender a história sócio-política de um país, especialmente para alguém que não sabe muito do país. Em particular, o teatro permite capturar a essência de uma cultura duma maneira muito mais subjetiva do que um livro didático. De fato, o teatro contribui com outros sentidos na cena com o uso de música, luzes, efeitos especiais e trajes característicos da região ou época. A linguagem cênica, quer seja em versos ou prosa, também força o espectador a pensar de modo diferente a história, dado que muitas vezes se usa vocabulário específico a essa cultura. Além disso, se representam falas que se ressignificam em cena e que permitem ao espectador tomar uma nova perspectiva e ver uma outra versão dos fatos.

Nesse ensaio, vou mostrar como um público pode familiarizar-se e aprender mais sobre um período histórico, político e cultural do Brasil através do estudo da peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues.

A primeira vez que um espectador assiste ou lê a peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, pode ficar ao mesmo tempo impressionado e confuso. Essa mistura de sentimentos deriva da complexidade da sequência dos eventos que acontece durante a peça. Vestido de Noiva trata da vida de Alaíde, personagem principal, que morreu atropelada. Depois do acidente, ela é levada ao hospital onde protagoniza seu passado, alternando entre memória e alucinação, momento em que contracena com Madame Clessi, uma mulher que passa a admirar. Alaíde é casada com Pedro, porém esse homem amava a irmã dela, Lúcia. Após a morte de Alaíde, Pedro e Lúcia se casam. No entanto, o enredo não segue essa ordem. Nelson Rodrigues escolheu uma sequência não-cronológica dos vários acontecimentos que alternam entre os três diferentes planos. O plano da realidade descreve o acidente de Alaíde, atropelada e levada ao hospital enquanto os médicos tentam salvá-la. O plano da alucinação serve para reconstituir os eventos dramáticos da vida de Alaíde que levaram à sua morte, através da sua conversa com Madame Clessi. O plano da memória consiste nas lembranças do passado da protagonista, em particular seus encontros com Pedro e, logo, sua irmã Lúcia. Nelson Rodrigues não escolheu organizar sua peça dessa maneira acidentalmente. Seu objetivo era destacar-se das regras do teatro antigo (tragédias ou comédias da Grécia Antiga) e produzir uma obra original, pois era um autor desconhecido com uma peça moderna e um grupo de atores amadores (Pereira 10).

Para elogiar a peça e recompensar sua originalidade, o Ministro da Educação Gustavo Capanema,  financiou a estreia de Vestido de Noiva em 1943 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (Pereira 6). Ainda hoje considera-se Vestido de Noiva o texto fundador do teatro brasileiro moderno (Dória 2). Vestido de Noiva é também uma peça moderna na medida em que a estrutura das falas não acompanha a ordem cronológica do enredo nem a mudança de cenário ou personagens. De fato, parece que a ordem do texto não segue nenhuma lógica ou estrutura. No trecho seguinte, vemos como as construções das frases mudam de uma linha a outra e de um plano a outro. Por um lado, no plano da alucinação, os personagens comunicam-se usando frases completas com sujeito e verbo:

MADAME CLESSI – Mas o que foi?
ALAÍDE – Nada. Coisa sem importância que eu me lembrei. (forte) Quero ser como a senhora.
Usar espartilho. (doce) Acho espartilho elegante!
CLESSI – Mas seu marido, seu pai, sua mãe e… Lúcia?
HOMEM (para Alaíde) – Assassina! (Rodrigues 84)

Imediatamente depois, o plano da realidade se caracteriza por falas breves e abruptas de personagens que não parecem sempre responder uns aos outros como podemos ver no trecho seguinte:

1º MÉDICO – Pulso?
2º MÉDICO – 160.
1º MÉDICO – Rugina.
2º MÉDICO – Como está isso!
1º MÉDICO – Tenta-se uma osteossíntese!
3º MÉDICO – Olha aqui.
1º MÉDICO – Fios de bronze. (Rodrigues 84)

A peça não apresenta essa falta de ordem ou estrutura por acaso, o que significa que a estrutura moderna da peça participa da construção do conflito. Apesar da alternação constante entre os planos, o leitor consegue seguir a história sem perder-se. Ao longo da leitura, começa a juntar todas as cenas diferentes e a entender, por exemplo, que a Mulher de Véu era Lúcia, a irmã de Alaíde. Se Rodrigues tivesse revelado todos os detalhes desde o começo, não existiria história. Na minha opinião, o objetivo do leitor ou espectador é reconstituir o enredo lendo ou vendo um ato depois do outro para finalmente resolver o quebra-cabeças, isto é, esta peça de teatro.

A modernidade dessa peça permite ao autor liberar-se das regras tradicionais do teatro e criar um teatro realmente brasileiro e não inspirado pelo teatro de uma outra cultura. Notavelmente, durante a década de 1940, o Brasil passa por um período durante o qual se fala muito da questão da brasilidade quer seja no aspecto sociológico ou político, quer seja no cultural. Sonia Cristina Lino, professora de História da Universidade Federal de Juiz de Fora define essa crise de identidade do Brasil:

A  dificuldade  de  se  delimitar  o  que  seria  a  cultura  brasileira, e mais ainda, de se chegar a um consenso, sobretudo quando se tinha a cultura europeia e particularmente a francesa como referência, acabou por criar um campo de conflitos e redefinições que teve as relações como Estado como arena. (Lino 2).

Ao mesmo tempo, em 1937, o Estado Novo é instituído no Brasil, um período que se vê completamente distinto do período anterior da ditatura de Getúlio Vargas. Vestido de Noiva marca a transição entre a ditatura getulista e o Estado Novo dado que é uma das primeiras peças que assinalam a passagem do “teatro para rir” ao “teatro sério” (Pereira 9) O crítico de teatro Daniel Caetano expressa essa ideia na publicação Diário de Notícias em 1946: “Antes havia lugar para a ditadura – ‘chanchada’; hoje, só há lugar para a democracia – o teatro como Arte” (Pereira 31).

Nessa década, o Brasil adota uma nova Constituição e alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial passa por uma redemocratização com o começo da Quarta República em 1946 (Nascimento 1). A atmosfera política e social desse período, marcada por uma alternação entre ruptura e continuidade com a deposição do Presidente Vargas e o começo da liderança do Presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares (Pereira 7), é ilustrada na peça de Nelson Rodrigues com a ruptura e continuidade presentes durante a mudança de cada plano. De fato, em vários momentos se vê a rubrica seguinte que ilustra essa mudança súbita: “Apaga-se o plano da memória. Luz no plano da alucinação” (Rodrigues 1943).

Além disso, observamos essas transformações de ruptura e continuidade nas relações entre Alaíde e os outros personagens. Por um lado, Alaíde continua sua relação amistosa e positiva com Madame Clessi durante toda a peça. A conversa sobre a morte das duas mulheres na passagem seguinte ilustra sua relação cordial:

ALAÍDE – Quem terá morrido ali, naquela casa?
CLESSI – Olha! Uma fortuna em flores!
ALAÍDE – Enterro de gente rica é assim.
CLESSI – O meu também teve muita gente, não teve?
ALAÍDE – Pelo menos, o jornal disse. (Rodrigues 122)

Por outro lado, a protagonista arruína sua relação com sua irmã, Lúcia, por causa do seu relacionamento com Pedro. O extrato seguinte mostra como, mesmo morta, Alaíde continua assombrando sua irmã:

ALAÍDE (com voz lenta e sem brilho) – Nem que eu morra, deixarei você em paz!
LÚCIA (falando surdamente) – Pensa que eu tenho medo de alma do outro mundo?(Rodrigues 123)

Apesar de que o conflito principal na história é o conflito entre Alaíde e Lúcia, é interessante perceber que a tensão entre as duas irmãs não existiria se Pedro não estivesse envolvido no meio da história. De fato, a única razão pela qual Lúcia decidiu arruinar o casamento da sua irmã é porque argumentou que Alaíde havia roubado seu namorado. Nessa passagem, Lúcia expressa sua frustração:

ALAÍDE (excitadíssima, também com o punho erguido) – Mentirosa! Sua mentirosa! Roubei seu namorado e agora ele é meu! Só meu!
LÚCIA (com o punho erguido) – Confessou. Até que enfim! Pelo menos, diga, berre: “Roubei o namorado de Lúcia!!!…” (Rodrigues 111)

Através desse trecho, podemos ver que a família está desmoronando por causa da presença de Pedro. Em vez de adicionar-se à família, Pedro está destruindo-a. A peça apresenta a dependência da figura masculina de maneira muito sutil, não através de uma ameaça ou injustiça direta, más através de acontecimentos particulares. Por exemplo, quando Alaíde repreende Pedro de namorar sua irmã, ele nega a realidade, insinuando que Alaíde está louca: “PEDRO (apontando para a testa) – É Alaíde que não está regulando bem!” (Rodrigues 121)

A hipocrisia de Pedro ilustra o poder dos homens. Nessa época, não se podia imaginar uma mulher ter controle da sua própria vida, e muito menos a do seu marido. O controle dos homens na sociedade era equilibrado pela submissão das mulheres a qualquer figura masculina (maridos, pais ou irmãos). A dominação masculina é apresentada de modo muito naturalizado na peça. Mesmo que a desigualdade entre os homens e as mulheres não pareça ser o tema central da peça, o enredo se concentra na briga entre Alaíde e Lúcia, lutando pelo mesmo homem.

No Brasil, o papel das mulheres na sociedade tem uma história particular e começa durante o período colonial. Eros de Souza, John R. Baldwin y Francisco Heitor da Rosa, psicólogos e professores, analisam esta desigualdade de gênero, vinculando-a à colonização.

O tema principal das relações de gênero durante a colonização é a miscigenação. A grande maioria dos colonizadores portugueses que se estabeleceram no Brasil foi de homens que tomaram a terra e as mulheres pela força. Eles mantiveram relações sexuais, primeiro com mulheres indígenas e, depois, com escravas africanas, produzindo uma elevada miscigenação. (Baldwin, Souza, Rosa) , Contudo, no começo do século XIX e durante todo o século XX, as mulheres reuniram suas forças pouco a pouco e decidiram lutar pelos seus diretos e pela sua independência: “Durante a era Imperial, as mulheres lutaram para ampliar seus papéis na sociedade. A rígida disciplina patriarcal que tinha excluído as mulheres de classes média e alta enfraqueceu-se” (Baldwin, Souza, Rosa).

A emancipação das mulheres pode também ser observada em Vestido de Noiva. Apesar de que Pedro causa a maioria dos acontecimentos e tensões, Rodrigues não omite a presença das mulheres na sua peça. Ao contrário, o autor presta muita atenção ao papel das mulheres, dado que os personagens principais são femininos. Na verdade, se não houvesse mulheres, não haveria história. Além disso, as mulheres não ficam dominadas pelos homens durante toda a peça. Ao final, o fantasma da Alaíde continua tornando a vida de Pedro e Lúcia miserável, assombrando-os e não lhes permitindo viver uma vida feliz juntos. Pode tirar-se vantagem da flexibilidade dos recursos teatrais – projetando a voz de Alaíde para assustar aos outros personagens – para enfatizar a dominação de Alaíde que não deixará ninguém em paz.

LÚCIA (espantada) – Está ouvindo, mamãe? Ela outra vez! Ela voltou – não disse?
MÃE – Não é nada, minha filha. Ilusão sua.
LÚCIA (atônita) – Mas eu ouço a voz dela. Direitinho! Falando! MÃE – Você parece criança, minha filha!
LÚCIA (com ar estranho) – Não foi nada. Bobagem.
ALAÍDE (microfone) – “Você sempre desejou a minha morte. Sempre – sempre.” (Rodrigues 126)

Embora as mulheres da época não tivessem a mesma representatividade de hoje, as personagens femininas de Vestido de Noiva conseguiram demonstrar força e independência, mesmo que por vingança. Rodrigues atinge um equilíbrio interessante entre criticar a dominação da figura masculina durante o Brasil da década 1940 e expor a emancipação gradual das mulheres nessa mesma época.

É claro que o machismo continua existindo hoje em dia, mesmo sendo, às vezes, sutil. Por essa razão, é importante e vale a pena ler peças que ilustram as questões de gênero, particularmente as que tentam superar as desigualdades entre os homens e as mulheres, colocando as mulheres no centro do palco e expondo suas experiências. Essa história, como muitas outras verdadeiras, precisam ser espalhadas porque, de alguma forma, refletem nossa sociedade atual, na qual os conflitos não se limitam a pessoas de gêneros diferentes.

Para concluir, embora os livros didáticos e históricos tenham muita informação e eventos-chave do passado de um país, a peça Vestido de Noiva é um exemplo de material diferente através do qual podemos familiarizar-nos com algum acontecimento histórico ou político de um país. Na verdade, lendo ou assistindo à obra Vestido de Noiva, o público não somente aproveita o enredo e a encenação da peça, senão consegue aprender mais sobre o papel da peça durante a evolução do teatro moderno brasileiro, da questão da brasilidade, do fim da ditatura getulista e do estabelecimento do Estado Novo no Brasil, e das relações de gênero durante a década de 1940.

Bibliografia:

  1. BALDWIN John R., SOUZA Eros de, ROSA da, Francisco Hector. A Construção Social dos Papeis Sexuais Femininos. Psicol. Reflex. Crit. vol.13 n.3 Porto Alegre, 2000
  2. DÓRIA Lilian Fleury. Vestido de Noiva – O Texto Fundador. Revista Científica FAP, 2006.
  3. LINO Sonia Cristina. Projetando um Brasil moderno. Cultura e cinema na década de 1930. Locus: Revista de história, 2007.
  4. NASCIMENTO Manoel Nelito. Educação e Nacional-Desenvolvimentismo no Brasil, 2012.
  5. PEREIRA Aline Andrade. Sobe o pano: a crítica teatral moderna e sua legitimação através de Vestido de Noiva. Universidade Federal Fluminense, 2004.
  6. RODRIGUES Nelson. Vestido de Noiva, Teatro, 1943