Reino dos bichos e dos animais é o meu nome: a intersecção entre raça, gênero e loucura

[Por Krista Naomi Arellano, estudante do quinto semestre de Português, 05 de abril de 2021]

            A segregação entre razão e loucura na sociedade foi, durante a maior parte da história, governada e determinada hegemonicamente por homens brancos da classe alta. As filosofias de lógica, racionalidade e moralidade pelas quais somos socializados e pelas quais nossas vidas diárias são governadas são transmitidas de uma tradição patriarcal e de supremacia branca que não aceita facilmente pessoas que se desviam dessas ideias. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, um livro de poesia de Stela do Patrocínio, editado e organizado por Viviane Mosé, é uma exposição da vida, pensamentos e monólogo de Stela do Patrocínio, uma mulher afro-brasileira diagnosticada com uma doença mental que passou a maior parte de sua vida isolada em um hospital psiquiátrico[1]. O livro e os poemas, que são as falas de Patrocínio gravadas e escritas de forma poética por Viviane Mosé, revelam as dificuldades, inconformidades, e resistências de Patrocínio, como uma mulher negra com doença mental, contra a “normalidade” e a racionalidade da sociedade. Patrocínio critica e questiona o julgamento, marginalização e tratamento daqueles considerados “loucos” na sociedade, que muitas vezes são dos grupos sociais mais oprimidos, como ela.

            No início do livro, Patrocínio conta a historia de como foi internada na instituição psiquiátrica—uma história com muitos detalhes que ela repete e que parece importante na sua memória. Ela disse, “ela achou que tinha o direito de me governar na hora /  me viu sozinha, e Luis não tava onde ele foi porque eu fiquei, de repente, de repente, eu fiquei sozinha, ele sumiu de repente, desapareceu e não apareceu mais…aí me trouxeram pra cá, mandou: “carreguem ela”, deu ordem, “carreguem ela”, na ambulância…” (49)[2]. Andrea Menezes Masagão em, “A gramática do corpo e a escrita do nome”, descreve que Patrocínio “nasceu em janeiro de 1941…Sua mãe dizia-se solteira e trabalhava como doméstica. Foi internada no núcleo Teixeira Brandão…Stela trabalhava como doméstica, na mesma casa em que sua mão enlouqueceu. Aos 21 anos, deu entrada no hospital Pedro II, levada pela polícia. Foi diagnosticada como ‘personalidade psicopática mais esquizofrênica hebefrénica’” (Masagão)[3]. Com apenas vinte e um anos, Stela foi levada pela polícia e internada em uma instituição contra sua própria vontade e pelas suas fala no livro, este parece ser um momento na sua vida de trauma. Patrocínio descreve: “me trouxeram pra cá como indigente sem família, vim pra cá aqui como indigente, sem ter família nenhuma, morando no hospital, estou aqui como indigente, sem ter ninguém por mim, sem ter família e morando no hospital” (49)[4].

            Em “Psicoterapia, raça e racismo no contexto brasileiro: experiências e percepções de mulheres negras”, Marizete Gouveia e Valeska Zanello discutem a história racial e as práticas discriminatórias das ciências médicas, especialmente relacionadas à psicoterapia de mulheres e mulheres negras. “A psicologia é criticada por reproduzir as relações de poder do colonialismo, utilizando as teorias hegemônicas, constituídas com base na cultura e no funcionamento da população branca, para a pessoa branca, porém como se fossem teorias de aplicação universal” (Gouveia)[5]. Ao pensar em sua própria conceituação de sua vida e sua saúde, Patrocínio afirma seu desacordo com aquelas que a tratam e a mantêm isolada. Disse, “Eu estava com saúde / Adoeci / Eu não ia adoecer sozinha não / Mas eu estava com saúde / Estava com muita saúde / Me adoeceram / Me internaram no hospital /  E me deixaram internada / E agora eu vivo no hospital como doente” (51)[6]. Nesta estrofe, Patrocínio descreve que em sua vida antes de ser hospitalizada, ela já era saudável e no controle da sua vida. Ela só ficou realmente doente ao ser internada e perder sua liberdade.

            Na Parte 3, Patrocínio descreve as maneiras não convencionais pelas quais ela concebe sua existência e propósito na vida. Ela disse, “Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo…/ E gases puro assim, ó, espaço vazio, ó / Não tinha formatura…/ Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas / Fazer cabeça, pensar em alguma coisa / Ser útil, inteligente, ser raciocínio / Não tinha onde tirar nada disso / Eu era espaço vazio puro” (82)[7]. Patrocínio afirma sua falta de vontade de viver sua vida de uma maneira considerada “normal” que nós, como sociedade esperamos viver: trabalhar, ter uma família, viver de acordo com as convenções e instituições que criamos. Desta forma de resistência e desvio social, Patrocínio e tantos outros de grupos socias marginalizados são ainda mais isolados, demonizados, e criminalizados. Essas formas alternativas de conhecer e ser, que sempre existiram e continuam existindo, são, nesse sentido, apagadas, internadas, e tornadas invisíveis e intocáveis. Gouveia e Zanella afirmam, “No Brasil, sendo estrutural e estruturante, o racismo entranhou-se em todos os tecidos da sociedade, do individual ao epistemológico…[O]cultam-se os saberes negros, com base no argumento da não cientificidade negra, como se sequer existissem; por outro, promove-se o acesso à literatura que atravessou um filtro enviesado tido como aplicável universalmente: o saber branco.”[8]

            Em seu livro, Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, Stela do Patrocinio resiste à vida de isolamento e invisibilidade que é forçada a viver como uma “forasteira” social e traz atenção e visibilidade para sua voz e verdade. Sua vida e sua voz demonstram o estigma associado à doença mental e à loucura em nossa sociedade que nasce das divisões sociais e da hierarquia da supremacia branca.

Referências

Gouveia Damasceno, Marizete, and Valeska Zanello. “Psicoterapia, Raça e Racismo No Contexto Brasileiro: Experiências e Percepções De Mulheres Negras.” Psicologia em Estudo 24 (2019). https://doi.org/10.4025/psicolestud.v24i0.42738.

Masagão, Andrea Menezes. “A Gramática Do Corpo e a Escrita Do Nome.” Psicologia USP 15, no. 1-2 (2004): 263–77. https://doi.org/10.1590/s0103-65642004000100024.

Patrocínio Stela do, and Mosé Viviane. Reino Dos Bichos e Dos Animais é o Meu Nome. Rio de Janeiro: Azougue, 2001.

[1] Patrocínio Stela do, and Mosé Viviane. Reino Dos Bichos e Dos Animais é o Meu Nome

[2] Patrocínio Stela do, and Mosé Viviane. Reino Dos Bichos e Dos Animais é o Meu Nome

[3] Masagão, Andrea Menezes. “A Gramática Do Corpo e a Escrita Do Nome.”

[4]  Patrocínio Stela do, and Mosé Viviane. Reino Dos Bichos e Dos Animais é o Meu Nome

[5] Gouveia Damasceno, Marizete, and Valeska Zanello. “Psicoterapia, Raça e Racismo No Contexto Brasileiro: Experiências e Percepções De Mulheres Negras.”

[6] Patrocínio Stela do, and Mosé Viviane. Reino Dos Bichos e Dos Animais é o Meu Nome

[7] Ibid.

[8] Gouveia Damasceno, Marizete, and Valeska Zanello. “Psicoterapia, Raça e Racismo No Contexto Brasileiro: Experiências e Percepções De Mulheres Negras.”