Encontro Precioso: As bonecas Abayomi como ferramenta de cicatrização multigeracional

[Por Alexandra Rocha-Álvarez, estudante do quinto semestre de Português, 06 de abril de 2021]

            No livro infantil As Bonecas negras de Lara, que conta a história de uma menina e suas bonecas tradicionais “Abayomi,” a autora Aparecida de Jesus Ferreira (Ponta Grossa: ABC Projetos, 2017) descreve a interação entre as crianças e as bonecas como um encontro precioso. É uma descrição que alude à tradução direta da palavra, mas também capta um tema do livro: o encontro entre o passado e o futuro, entre a dor e a esperança. Algo central no conto é a transmissão de conhecimento cultural pela bisavó de Lara, quem a educa sobre como suas ancestrais começaram a fazer essas bonecas. Quando elas estavam em sua jornada forçada da África, suas crianças choravam muito, e as mães “começaram a fazer bonecas para suas filhas e seus filhos. Assim, as crianças podiam brincar e ficavam menos cansadas” (Jesus Ferreira, 13). A história original das bonecas já é, então, uma história de conforto familiar. Naquele momento terrível de opressão, um momento onde elas estavam presas no limbo entre o lugar de onde foram arrancadas e o inferno para onde estavam sendo levadas, essas mães só podiam oferecer uma distração material para seus filhos. Conhecendo a triste história do princípio das bonecas Abayomi, elas se tornam símbolos de resiliência, luto e esperança.

            O tema de cura geracional que este livro apresenta não é novo na literatura afro-brasileira e nas obras escritas pelos oprimidos. A escravidão é algo que assombra as linhagens de pessoas; como o status de escravo foi passado para todos os filhos de pessoas escravizadas, o trauma que sobrou dela também é transmitido para seus descendentes. Precisa-se processar o sofrimento ancestral e transformá-lo para que seja mais suportável, algo que pode se dar por meio da arte. Por exemplo, no poema “Vozes Mulheres” de Conceição Evaristo, o eu lírico, apenas três gerações de seus ancestrais escravizados, encontra fortaleza em pensar no que seus ancestrais suportaram, e esperança no sonho de um futuro melhor para seus filhos. Ela traça sua linhagem desde sua bisavó até ela mesma, mostrando que com cada geração a consciência e a rebelião crescem. O poema termina com a invocação da voz de sua filha, quem representa o ponto onde o “ontem—o hoje—o agora” convergem (Evaristo, 10-11). Neste poema, como na história, criança e bisavó têm uma relação de empoderamento. Evaristo mostra como as crianças podem curar quando atuam contra as forças opressoras que feriram seus ancestrais. No livro de Ferreira, Lara aprende sobre essas forças opressoras e usa sua voz para compartilhar essa história com seus companheiros.

            As próprias bonecas, então, tornam-se objetos por meio dos quais os traumas geracionais podem ser representados fisicamente. Elas são objetos que curam. A bisavó de Lara não finge que a dolorosa história das bonecas não existe, mas a honra através de seus esforços para compartilhá-lo com Lara, e transforma esse sofrimento em algo positivo. O ato de compartilhar é em si mesmo uma cura para a família porque permite que a bisavó e Lara passem bons momentos juntas. Isso é particularmente significativo considerando o quanto a escravidão desorganizou as famílias. Se você fosse uma pessoa escravizada, não poderia controlar se sua família foi arrancada de você. Você provavelmente não conheceria sua história por causa dessa faceta da escravidão. As bonecas negras de Lara são uma forma física pela qual a história pode ser transmitida. Quando as bonecas Abayomi e Lara interagem, é um encontro entre o passado e o presente. São uma coisa linda que seus ancestrais criaram em circunstâncias terríveis, mas também são uma representação da criatividade e esperança entre sua linha familiar que o colonizador não poderia erradicar. Lara é então ensinada a ser um vetor através do qual a história de sua família é transmitida, alguém que carrega o sofrimento de família com ela, o ponto onde o “ontem, hoje, o agora” de sua família converge.