O Cortiço

Salvação pela Serpente: Ironias e hipocrisias da moralidade cristã no clássico romance do século XIX de Aluísio Azevedo, O Cortiço

por Sophie Neely

Escrito em 1890 mas pouco lido nos Estados-Unidos, O Cortiço, de Aluísio
Azevedo é um clássico no Brasil, conhecido sobretudo por seu tratamento controverso sobre a desigualdade racial e a hierarquia social brasileira no século XIX.

Nascido em 1857 em São Luís no Maranhão—três séculos depois do “descobrimento” europeu do Brasil—Azevedo estudava arte e desenhava caricaturas profissionalmente antes de escrever a obra (Rosenthal xi). Os eventos que precedem a sua publicação foram a abolição da escravidão em 1888 e o estabelecimento da república do Brasil, o que marcou o fim da monarquia portuguesa em 1889. Essa sociedade brasileira que mudava rapidamente introduziu assim uma multiplicidade de perguntas filosóficas controversas, sobretudo o que constituía a nação do Brasil e qual sua relação com o colonizador português. No romance, um tema fundamental ligado a esta pergunta é o desafio dos costumes conservadores da Igreja e sua influência na sociedade brasileira, particularmente sua cumplicidade em reforçar a pobreza extrema nos lugares como o cortiço, que teve uma reputação de sujidade e assim pecado, superando o ponto de redenção. Com o uso de imagens, símbolos e alusões bíblicas em O Cortiço, Aluísio Azevedo representa a violação de Pombinha pela Léonie como metáfora irônica do sacrifício de Jesus Cristo, para salvar o cortiço, ao oferecer uma crítica da moralidade Cristã no contexto da igualdade social brasileira durante o século XIX.

Primeiramente, Azevedo usa alusões animais para caracterizar a Léonie e a Pombinha ironicamente com as características de Deus e de Cristo, respectivamente. O leão aparece em vários instantes na Bíblia, incluído quando Jacó abençoa seus filhos, descrevendo um deles como “um grande leão…um leão forte” diante do qual seus irmãos vão se curvar e quem ninguém “tem coragem de perturbar” (Gênesis 49:9-10). Aqui, o leão representa uma força de poder que não só está exaltada, mas também divinamente ordenada. Igualmente, no romance, as lavadeiras de São Romão são “tão alegres e vivazes” mas quando Léonie se apresenta, elas “não se animavam, defronte dela, a rir nem levantar a voz, e conversavam a medo cochichando, a tapar a boca com a mão, tolhidas de respeito pela cocote” (Azevedo 69). Desta forma, Azevedo faz uma caracterização da Léonie como temida e admirada o ao mesmo tempo, um símbolo da realeza no contexto Bíblico. Sua chegada no cortiço está assinalada ao povo de São Romão pelas “suas roupas exageradas e barulhentas de cocote à francesa”; esse tipo de vestido excessivo e espalhafatoso “contrastava tanto com as vestimentas, os costumes e as maneiras daquela pobre gente” que Léonie pode “dominar [as lavadeiras] na sua sobranceria” (Azevedo 68-69). Aqui, Azevedo marca a primeira ironia: no mundo exterior ao cortiço, a roupa evidentemente de excêntrica indica a autoridade, forjada de experiência. E é com essa autoridade que ela “discreteava sobre assuntos sérios…cheia de inflexões de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a moral e a virtude” (Azevedo 68). Ao usar a ironia em duas formas aqui, Azevedo contrasta os traços associados com a profissão da Léonie ambas com sua autoridade moral percebida e com essa imagem da realeza, onde a prostituta não é simplesmente um rei bondoso mas toma o lugar de Deus. Dessa maneira, Azevedo inverte a moralidade aceita na época, ao argumentar que não é necessariamente as pessoas poderosas na sociedade (em outras palavras, os ricos) que tem a autoridade de Deus.

Além de sugerir que a salvação não vem de uma forma tradicionalmente religiosa, Léonie também representa a mobilidade social. Ao introduzir Léonie, Azevedo descreve uma aparência de luxo—o seu vestido é “de seda cor de aço, enfeitado de encarnado sangue de boi, curto” com vinte botões; ela traz uma sombrinha vermelha “sumida numa nuvem de rendas cor-de-rosa e com grande cabo cheio de arabescos extravagantes” e um chapéu imenso; e sua cara tem “lábios pintados de carmim; suas pálpebras tingidas de violeta; o seu cabelo artificialmente louro” (Azevedo 68). Aqui, a roupa da Léonie representa a extravagância e impetuosidade do mundo exterior; ao enfatizar a sua maquiagem, Azevedo cria um contraste entre o entendimento tradicional do honesto e “bom,” a forma da bondade que visita o cortiço. Além disso, a descrição longa serve como testemunho do sucesso da prostituição da Léonie, seu status socioeconômico. É significante aqui que a Piedade, uma das mulheres mais devotadas “declarou que a roupa branca da madama era rica nem como a da Nossa Senhora da Penha” (Azevedo 70); outra vez, a ironia destaca a profissão da Léonie—como ela pode ter roupas tão brancas quanto a Senhora santa com quem ela está sendo comparada. Ademais, Léonie não é hipócrita; ao cumprir as expectativas associadas com seu nome, ela não só prega ao povo, mas também cuida deles, os trazendo presentes e comprando cerveja. As pessoas comentam sobre sua “alma grande” quando ela ainda quer “mandar [o menino] buscar mais,” mas as pessoas “não lhe permitiram” porque ela estaria a “gastar tanto” (Azevedo 71). Assim, como os leões da cova na conta de Daniel que não devoram o Daniel inocente (Daniel 6), Léonie é benevolente, protegendo as pessoas fracas e vulneráveis. Desta forma, Azevedo contrasta a natureza da Léonie com os estereótipos da sua profissão, sua primeira crítica a moralidade Cristã.

Em contraste do papel benevolente, mas dominante da Léonie, a personagem da Pombinha simboliza a jovem inocente e pura, muito parecida com as pombas que aparecem no Bíblia nos três casos importantes. As pombas aparecem primeiramente na história de Noé, quando uma pomba retorna a ele com uma folha de oliveira ao entardecer, assim que ele fica sabendo que a inundação famosa havia terminado (Gênesis 8:10-11). No livro dos Cânticos, a pomba representa a “amada” do orador, descrita como “formosa” e “linda” com os olhos que “brilham como os das pombas!” (Cânticos 1:15; Cânticos 4:1). No Novo Testamento, durante o seu batismo, Jesus “saiu logo da água, e eis que se abriram os céus, e viu o Espírito de Deus descendo como pomba e vindo sobre Ele” para o reclamar e o abençoar (Mateus 3:16-17). Assim, a pomba na Bíblia representa os seres puros e inocentes, cuja chegada sinala a vida nova. Igualmente, a Pombinha do romance é “bonita…loura, muito pálida, com uns modos de menina de boa família,” um sinal o século XIX duma moça casta (Azevedo 20). Não coincidentemente, ela tem notáveis semelhanças com a amada dos Cânticos, que é também “a filha favorita…sem mácula” (Cânticos 6:9)—conhecida como “a filha [quem] era a flor do cortiço,” Pombinha é igualmente delicada e virginal (Azevedo 20). No cortiço, Pombinha é mais conhecida por sua bondade, pois “era quem lhe escrevia as cartas; quem em geral fazia o rol para as lavadeiras; quem tirava as contas; quem lia o jornal para os que quisessem ouvir” (Azevedo 21). Aqui, sua generosidade lembra o caráter abnegado descrito na Bíblia de Jesus, que ajuda a gente pobre, cura a gente doente, e lava os pés dos seus discípulos (Lucas 14:13; Mateus 14:35-36; João 13). Importantemente, sua alfabetização lhe dá o poder, e assim como Jesus, ela não o abusa. Em vez disso, a natureza de Pombinha reflete seu nome inocente e sem pecado, e sua caridade ilimitada demonstra seu amor pelo cortiço, lembrando os traços de Cristo. Significativamente, os sacrifícios das pombas estão referenciados em vários instantes “em sacrifício de reparação pelo pecado,” incluído na aliança do Senhor com Adão, e quando Jesus está presente no templo para purificação de um menino pequeno (Gênesis 15:9; Levíticos 5:7; Lucas 2:24). Esse papel não só serve para estabelecer Pombinha como uma personagem inocente e pura, mas também a marca como um símbolo de sacrifício, prefigurando a sua violação mais tarde no romance.

Depois de caracterizar as duas mulheres com traços de Deus e de Jesus, Azevedo pode assim apresentar uma dinâmica entre Léonie e Pombinha de mãe e filha, uma inversão irônica da relação entre Deus, o Pai, e Jesus, Seu filho. Por causa da caridade de Pombinha, a gente do cortiço lhe dá presentes “o que lhe permitia certo luxo relativo” como os sapatos, as joias, e as roupas (Azevedo 21); deste modo, ela é a filha adorada do cortiço inteiro. Ademais, é por causa desses presentes materiais que ninguém “não seria capaz de desconfiar que ela morava em cortiço,” um fato que faz alusão ao início humilde de Jesus (a manjedoura famosa) e também marca a menina como diferente, móvel socialmente (Azevedo 21; Lucas 2). Ao trazer “suas joiazinhas para sair à rua, e, aos domingos…na igreja de São João Batista,” sua ostentação de posses materiais contrasta com o conservadorismo e ascetismo tradicionais da Igreja, e ao mesmo tempo conecta seus hábitos e seu traje com Léonie (Azevedo 21). (Como uma filha imitativa, contudo, é certamente uma versão bem “reduzida.”) Demais, mesmo que Pombinha seja querida por todos, é claro que Léonie tem um amor especial por ela. Apesar de seu trabalho como prostituta, Léonie toma o papel maternal: ela entrega à Pombinha “uma medalha de prata” que é “uma fatia de queijo com um camundongo em cima” (Azevedo 71). Além de reforçar essa relação maternal e adoradora, o pequeno presente da Léonie demonstra a antecipação da violação da Pombinha, representando um predador que devora sua presa, ao reforçar sua caracterização como o leão (Salmos 17:12). Seguinte a violação, Léonie se refere como a “negrinha” de Pombinha—uma referência mais direta a seu papel bem atencioso e indulgente em sua vida (Azevedo 90). Dessa forma, Azevedo apresenta uma relação metafórica entre Léonie e Pombinha como mãe e filha, uma inversão irônica da relação entre Deus como o Pai e Jesus como o Seu filho.

Essa relação é fundamental para entendermos a violação da Pombinha, simbolizando a crucifixão de Cristo, que Azevedo sugere quando mistura imagens bíblicas de prece e da vontade de Deus, do sangue, do sacrifício, e dos sonhos transformativos. No cortiço a religiosidade da Dona Isabela é extensamente conhecida; descrita como “a cara macilenta de velha portuguesa devota,” sua fé induz comparações com a Mãe Maria humilde, quem se descreve como “a serva do Senhor” (Azevedo 20; Lucas 1:38). Bem religiosa, Dona Isabela ora todos os dias para que Deus abençoe sua filha com a menstruação (Azevedo 21). Na ironia que Dona Isabela tenha involuntariamente orado pela violação de sua própria filha, Azevedo faz uma piada sinistra sobre esperar a “bondade de Deus” e da Sua vontade. Contudo, o desejo da Dona Isabel de se submeter à vontade de Deus reflete como a morte de Jesus foi também o resultado da vontade de Deus (João 2:20). Retornando à importância do nome da Pombinha, na Bíblia a pomba simboliza a fuga para um abrigo (Salmos 55:6; Jeremias 48:28). Adicionalmente, o apóstolo Paulo descreve como Cristo morreu para salvar a humanidade, para criar um refúgio aos pecadores (Romanas 6:23; Efésias 1:7). No romance, o “cruento tributo da puberdade” deve chegar para ocasionar a “felicidade” da família, que depende do casamento com o Costa “bem empregado,” que “tencionava, logo que mudasse de estado, restituí-las ao seu primitivo círculo social” (Azevedo 21). Portanto, por causa da sua conexão com a mobilidade social, o sangue da Pombinha é assim essencial para libertá-la das amarras da pobreza, não só ela mesma, mas também a sua mãe.

Consequentemente, quando a menstruação começa—depois da violação—Dona Isabela “parecia querer beijar…aquele sangue abençoado, que lhes abria os horizontes da vida, que lhes garantia o futuro; aquele sangue bom, que descia do céu, como a chuva benfazeja sobre uma pobre terra esterilizada pela seca” (Azevedo 94). Pela comparação da chegada do sangue “abençoado” com a chuva depois a seca, Azevedo refere à crença da Dona Isabel que a menstruação não é somente um sinal de Deus, vindo do Céu, mas também um alívio para todo mundo que mora em sua “terra” (Deuteronômio 11:17; Atos 14:7). Contudo, como a salvação da humanidade, esse alívio deve ser pago com o sacrifício. Certamente, uma diferença principal entre O Cortiço e a Bíblia é que Jesus sangra durante o sacrifício, e Pombinha sangra depois. Contudo, esse é um outro exemplo de ironia; o sangue de Jesus durante sua crucificação horroriza a Virgem Maria e todos presentes, mas o sangramento atrasado de Pombinha é celebrado pela Dona Isabela e os moradores do cortiço. Como Dona Isabel não tem nenhuma maneira de saber que a violação precipita esse sangue, Azevedo sugere que não é sua posição social que a faz simples, mais a ensinamento Cristão da fé cega. No final das contas, o aspecto mais unificado do sangue é como é derramado. Na conta da crucifixão é a traição do Filho pelo Pai; a final proclamação famosa de Cristo na cruz foi, “Meu Deus, Meu Deus! Por que me abandonaste?” (Mateus 27:46). Do mesmo modo, Pombinha fica progressivamente “perplexa” e desesperada e protesta repetidamente “com lágrimas infelizes” enquanto Léonie a despe e a estupra (Azevedo 89). Pombinha não mais vê Léonie como uma fonte de confiança. Como na crucificação de Cristo, a salvação necessita dor, humilhação, e a morte da inocência.

Contudo, a salvação não é só o resultado da crucificação; na Bíblia e em O Cortiço igualmente, a transformação também segue. No Antigo Testamento, Deus fala que ele comunica diretamente com profetas em sonhos (Números 12:6), e ao longo da Bíblia, existe inúmeros exemplos de sonhos que funcionam como a maneira que Deus fala com a humanidade, incluindo cinco sonhos prevendo a chegado de Jesus (Mateus 1:18-2:23). Os sonhos são assim importantes. No romance, o sonho da Pombinha é uma forma de revelação transformativa com três imagens principais: o sol, a flor, e a borboleta. O sonho é sobretudo interessante porque não é estritamente bíblico, mas o que ele representa em sua mistura de imagens laicas e bíblicas é a transformação pela qual Pombinha renasce, muito como a ressurreição e ascensão de Jesus Cristo.

Depois da violação, uma Pombinha doente sonha se deitar numa flor, outra vez reforçando a imagem virginal de Cânticos, o “formoso lírio entre os espinhos” (Cânticos 2:2). Tem um sol grande, que brilha acima da flor. Um dos instantes mais famosos com sol na Bíblia é a conversão de Saul, quando durante uma viagem, “uma intensa luz, vinda do céu” o cega, perguntado, “Saul, Saul, por que me persegues?” (Atos 9:3). É essa experiência que causa Saul a se tornar Paulo, discípulo de Jesus; o sol aqui assim representa Deus, que tem o poder de transformar os homens. No sonho, o sol está personificado e “fitava obstinadamente” a Pombinha “lá do alto…enamorado das suas mimosas formas de menina” (Azevedo 93). Essa fixação indica o amor intenso do sol pela menina, muito como o da Léonie. Depois de fitar ao sol, ele se torna uma borboleta que paira no céu acima de seu corpo. Mesmo que a borboleta não apareça na Bíblia diretamente, a linguagem da metamorfose aparece na versão original grega como metamorphoo, para indicar a transformação iminente (Romanas 12:2; 2 Coríntios 3:18). De acordo com esse tropo, quando a borboleta bate as asas acima dela e solta uma nuvem de poeira dourada, Pombinha “sentiu o grito da puberdade sair-lhe afinal das entranhas” (Azevedo 93). Nesse momento, ela assim passa pela transformação do seu corpo, de uma menina à uma mulher. Enquanto, o sol do sonho está “a pino” no Céu para “[abençoar] a nova mulher que se formava para o mundo” com um raio no seu ventre (Azevedo 93). Se a Léonie é a representação de Deus no contexto do romance, o sol aqui indica o poder da Léonie para tornar a transformação real da Pombinha. Adicionalmente, essa caracterização da Léonie como o sol também oferece uma leitura mais profunda da borboleta—possivelmente uma representação do Espírito Santo. Em qualquer caso, a Pombinha está ressuscitada da morte que ela sofre durante a violação, pela corrente do sangue.

Significativamente, na Bíblia as flores são também comparadas pelo menos quatros vezes com “a existência do ser humano,” que “floresce como a flor do campo, que se esboroa quando o vento sopra” (1 Pedro 1:24-25; Jó 14:1-2; Isaías 40:6-8; Salmos 103:15-16). Como as flores têm associações com a morte humana, sua colocação na terra com Pombinha antes da transformação provavelmente representa sua humanidade, então refere-se à necessidade da morte humana de Cristo para viver ao lado de Deus no Céu, conhecido como a Ascensão (Atos 1:9-10). Antes da Ascensão, contudo, Jesus passa quarenta dias na Terra. No caso da Pombinha, depois de dois anos de casamento, ela começa a viver a vida como Léonie, finalmente “subindo ao trono” dela. Obviamente, a diferença entre a ascensão de Cristo e a “ascensão” da Pombinha é que Cristo perde seu ego mortal e se torna completamente divino, enquanto a Pombinha se torna mais “humana” depois de sua transformação. Como uma mulher, ela sangra e portanto é capaz de “pecar,” de acordo com a moralidade Cristã. De fato, a Pombinha se torna uma prostituta.

Essa transformação constitui o cerne da ironia em O Cortiço: a prostituição da Pombinha para salvar o cortiço dos seus pecados. A transformação de Pombinha em prostituta é uma das marcas dessa ironia; Azevedo escreve que ela comete adultério com “um artista dramático que muitas vezes arranca [o marido], a ele, sinceras lágrimas de comoção, declamando no teatro em honra da moral triunfante e estigmatizando o adultério com a retórica mais veemente e indignada,” ao destacar as pessoas que alegam que eles representam a moralidade Cristã (Azevedo 156). Depois de estar abandonada pelo seu marido, Pombinha vem a Léonie e mora com ela como prostituta. Ao fazer um círculo completo, Azevedo devolve às alusões animais com a imagem de uma serpente: no São Romão, as duas são vistas juntas como uma “cobra com duas cabeças” (Azevedo 157). Quase sem exceção, a serpente é poderosa na Bíblia, seja do bem ou do mal: desde o seu papel como Satanás na queda do homem, à punição dos israelitas pelo Deus por sua falta de fé neste deserto (Gênesis 3; Números 21:4-6). Igualmente, como a cobra poderosa, as duas cocotes “dominavam o alto e o baixo Rio de Janeiro” (Azevedo 157). Ademais, como Satanás que seduz Eva a comer a fruta no pecado original, as mulheres são astuciosas e impiedosas, com “lábios [que] não tocavam em ninguém sem tirar sangue” (Azevedo 157). Essas “vítimas” são “os velhos conselheiros desfibrados pela política e ávidos de sensações extremas” ou “os gabinetes particulares dos hotéis os sensuais e gordos fazendeiros de café, que vinham à corte esbodegar o farto produto das safras do ano, trabalhadas pelos seus escravos” (Azevedo 157). Aqui, Azevedo oferece uma crítica clara da relação entre moralidade e aceitação social: os políticos e os barões donos de escravos são ambos tipos de homens ricos socialmente aceitáveis que fazem suas fortunas fundadas em corrupção, em contraste as prostitutas, condenadas como o cortiço destituído.

Apesar disso, elas nunca exploram o cortiço. De fato, as duas são benevolentes. Pombinha “abria muito a bolsa, principalmente com a mulher de Jerônimo,” que está arrasada pelo abandono de eu marido; além disso, é por causa das “esmolas de Pombinha” que “Piedade não faltava de todo o pão, porque já ninguém confiava roupa à desgraçada, e nem ela podia dar conta de qualquer trabalho” (Azevedo 157). Assim, Pombinha tem o caráter benevolente divino, abençoando “os pobres em espírito,” “os que choram,” e “os humildes” (Mateus 5:3-5). Por causa disso, Pombinha “lá na Avenida São Romão, era, como a mestra, cada vez mais adorada pelos seus velhos e fiéis companheiros de cortiço,” e o povo “as abençoava com o seu estúpido sorriso de pobreza hereditária e humilde” (Azevedo 157). Desta forma, ela assumia não só as mesmas responsabilidades da Léonie, mas também o mesmo poder. Nessa frase, claro que o tom do Azevedo é bem sarcástico, uma crítica amargurada da condenação do cortiço de sempre ser simples e “estúpido” e assim pobre—uma situação “hereditária” ou querida por Deus, em vez do resultado da crueldade e ganância dos homens como os que Léonie e Pombinha perseguem. Azevedo também comenta sobre como a pobreza vive no ciclo; Pombinha cuida da filha da Piedade, chamada “sua protegida predileta” para quem ela tem “uma simpatia toda especial, idêntica à que noutro tempo inspira ela própria à Léonie” (Azevedo 157). Portanto, enquanto o ciclo da pobreza continua, o povo do cortiço continua a lutar com suas “mulheres escoliadas.” Contudo, essa luta vem com suas próprias concessões: Mesmo que Juju, a protegida mais jovem da Léonie “tinha castanhos por natureza,” ela pinta o seu cabelo para ser loira, inspirava elogios como “rica pequena,” “um criaturinha dos anjos,” e “uma menina Jesus” (Azevedo 69). Sua devoção por Juju, um nome Iorubá pelo sobrenatural “pagão” assim significa a necessidade de europeizar seu corpo a fim de se tornar uma menina digna (Azevedo 69). No fim do romance, então, as duas prostitutas estão sempre “acompanhadas por Juju” (Azevedo 157). Outra vez, Azevedo comenta no aspecto cíclico a pobreza e a ascensão social.

Em O Cortiço de Aluísio Azevedo, a violação de Pombinha pela Léonie utiliza imagens, alusões, e símbolos bíblicos ironicamente para ressaltar a hipocrisia da suposta moralidade Cristã no contexto da igualdade social brasileiro durante o fim do século XIX. Ao usar as características animais associadas com Deus e Jesus, Azevedo estabelece os caráteres da Léonie e Pombinha e sua relação familial. Com imagens do sangue para representar um sacrifício piedoso, ele retrata a violação como a crucifixão de Cristo; o sonho sobre a transformação da Pombinha, contém os elementos bíblicos para representar a Ascensão de Jesus depois de sua ressurreição. Tão logo entra no seu próprio “Céu”—nesse caso num hotel, o centro de sua prostituição—Pombinha junta a Léonie para dominar o seu mundo e cuidar do cortiço de uma forma benevolente. Essa narrativa alegórica e irônica assim serve para contestar a moralidade da Igreja imposta sobretudo no povo pobre, apesar do fato que é o povo do cortiço que é sincero, e os forasteiros, do mundo rico, reconhecidos, e “abençoados,” que são inumanos. Ao confrontar essa hipocrisia, O Cortiço conclui com uma última reviravolta, demonstrada pelo verso no livro de Mateus. Depois que Jesus prega contra a hipocrisia, ele pergunta ao povo, “Qual de vocês, se seu filho pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou se pedir peixe, lhe dará uma cobra?” (Mateus 7:9–10). De fato, isso é exatamente o que se passa no cortiço, onde a gente ora por suas vidas e recebe uma salvadora imprevista—a cobra, que não morde, mas em vez disso, cuida deles, o tanto quanto pode.

Bibliografia

A Bíblia Português. King James Atualizada, Abba Press, 2012.

Azevedo Aluísio. The Slum. Traduzido por David Rosenthal, Oxford University Press, 2000.

Azevedo Aluísio. O Cortiço. 1890. Acedo ao NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, Universidade de Amazônia.