Stela do Patrocínio: Desconstruindo dualismos através da poesia

[Por Tricia Viveros, estudante do quinto semestre de Português, 04 de abril de 2021]

         Reino dos bichos e dos animais é o meu nome é uma coleção de poemas de Stela do Patrocínio, editados e montados por Viviane Mosé em 2001. As falas de Stela foram gravadas durante encontros com ela no manicômio onde ela estava internada, no Rio de Janeiro. À primeira vista, os poemas parecem ter um conteúdo temático muito abstrato. Stela fala de uma maneira muito figurativa e as imagens que ela constrói parecem quase surreais. Mas, esses poemas transgressivos redefinem os parâmetros da loucura. Através deles, a nossa concepção da loucura como algo ilógico é desafiadapois no mundo psicológico de Stela, achamos uma estrutura lógica sólida. A única diferença é que aquela lógica opera em seus próprios termos, independente da razão convencional. E assim, descobrimos que o que faz alguémlouco” não é a irracionalidade, se não simplesmente ser «outro». Ao final, os poemas nos reorientam para reconhecer os sistemas subjacentes de opressão que governam nosso senso de normalidade. E percebemos que o verdadeiro perigo não está nos «loucos» mas nos «normais».

         A história e noção dos manicômios—um lugar onde as pessoas «loucas» podem recuperar e se melhorar—promove a narrativa de que eles foram criados para o bem-estar dos doentes mentais. Assim, também promove a idéia de que os doentes estão sendo protegidos. Mas sob aquele disfarce existe a realidade de que os manicômios existem para proteger os «normais» ou neurotípicos. Não é muito diferente de como as prisões existem para proteger os cidadãos livres dos condenados. Em vários instantes no livro, Stela compara o manicômio a uma prisão. Na Parte I, ela diz, “Estar internada é ficar todo dia presa / Eu não posso sair, não deixam eu passar pelo portão” (Patrocínio, 55). É óbvio que a internação de Stela não é voluntária. A ela não é dada a opção de sair. A frase “não deixam eu passar pelo portão” implica um grupo de pessoas que servem como os agentes deste aprisionamento dela. Esse grupo de pessoas, ou “eles,” são referidos repetidamente por Stela ao longo do livro, mas não é completamente claro quem eles são. Mas essa ausência poética da clareza deixa espaço para nossas próprias conjecturas como leitores. “Eles” pode se referir aos médicos, aos psiquiatras, ou também pode ser ainda mais abstrato—a sociedade, os «normais». Stela não é só mantida prisioneira pelos psiquiatras, senão também pela sociedade que permite e sustenta a existência desses manicômios. A mesma sociedade que define os limites da normalidade.

         A comparação com as prisões reaparece na Parte V. Stela diz que ela está “cumprindo a prisão perpétua” (Patrocínio, 97). Essa idéia de cumprir a prisão perpétua sugere a noção de uma sentença de vida. Num sentido, é como se a internação de Stela fosse uma sentença, e nesses termos, é um castigo por fazer errado. Ser «louca», então, é equiparado a estar errado; não ficar dentro dos limites da convenção é uma transgressão. Desse jeito, a comparação com prisões sutilmente critica dicotomias ocidentais de «bem e mal» e como tentamos colocar tudo dentro dessas dualidades. O manicômio, para Stela, não é só uma prisão mas uma ficção fabricada pela sociedade ortodoxa. Ela reforça esse argumento quando fala sobre o ato de «adoecer». Na Parte I, ela começa um poema dizendo, “Eu estava com saúde / Adoeci” e depois reconstrói a narrativa, “Mas eu estava com saúde / Me adoeceram / Me internaram no hospital” (Patrocínio, 51). O agente da ação muda. Stela pega a noção convencional de como uma pessoa fica doente—a própria pessoa “adoece”—e o transforma. Agora, a culpa não cai nela. A culpa fica com aqueles enigmáticos “eles”: os médicos, os políticos, os «normais». Ela os enquadra como responsável por criar e reproduzir a ilusão de um mundo racional baseado em dualismos, «doente versus saudável» sendo um desses. No artigo “Stela do Patrocínio e a poética da clausura,” as autoras argumentam que a poesia de Stela “nos desafia pela forma como organiza esteticamente a percepção que a poeta tem de si como objeto dentro do discurso médico” (Almeida e Bonfim, 2018). Stela é bem consciente da sua existência em relação à instituição que a rotula de vítima da loucura. Ela é capaz de ficar fora dela mesma e entender o discurso invisível que determina sua invalidez.

         Portanto, os poemas de Stela do Patrocínio mostram uma mente sem limites, uma mente não defeituosa mas perspicaz, que percebe os padrões sociais que governam nossa vida cotidiana. A capacidade de Stela de questionar esses princípios é um desafio à ordem social e ao raciocínio «normal». Sua condição como mulher negra e pobre levou ela a experimentar a violência de um sistema fundado na ideologia da supremacia branca, a mesma ideologia que perpetua dualismos ocidentais. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome é um testamento à astúcia das vozes que não pertencem ao mundo do status quo. Através da fala, Stela do Patrocínio afirma sua licença poética, e reescreve e desafia a narrativa que justificou seu aprisionamento e sua exclusão.

Referências

Almeida, Tereza Virginia de  e  Bonfim, Letícia de. Stela do Patrocínio e a poética da clausura. Estud. Lit. Bras. Contemp.[online]. 2018, n.54 [citado  2021-04-04], pp.277-295.  https://doi.org/10.1590/10.1590/2316-40185415. 

Patrocínio, Stela do. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Ed. Viviane Mosé. Rio de Janeiro: Azogue Editorial, 2001.